sábado, 12 de janeiro de 2013

Canção em Quatro Sonetos


I

A maçã precipitada, os incêndios da noite, a neve forte:
e a rude beleza da cabeça.
- Quem ouvirá em que planetas esta imagem
da minha morte, quando eu abrir o lenço
sobre o coração terrível e suspenso?
Uma criança de sorriso cru
vive em mim sem dar um passo, amando
respirar em sua roupa o cheiro
do sangue maternal. O vício
do sono apouca as frias glicínias
do seu cabelo inocente,
inocente. Ela não sofre e apenas sente
a máquina que é, com cabeleira e dedos cheios
de energia rápida: a magia, os segredos.

II

Tantos nomes que não há para dizer o silêncio -
a combustão interior do tempo;
uma maçã cortada, uma pomba de éter:
o pensamento.
Não te chames mais, adolescente
comendo uvas negras.
Abres a camisa em que escutas todas as mãos do vento.
E vês atrás de ti as máquinas resolutas
de fabricar as formas rápidas,
e convulsas, do esquecimento.
Isto no ar há-de ficar como frio limpo.
O meu nome parou diante
do instante mortal que o guardara.
Evapora-se a roupa, mas não sinto.

III

às vezes, sobre um soneto voraz e abrupto, passa
uma rapariga lenta que não sabe,
e cuja graça se abaixa e movimenta na obscura
pintura de um paraíso mortal.
Nesse soneto noturno escrevo que grito, ou então que durmo,
ou às vezes que enlouqueço. E a matéria grave
e delicada do seu corpo pousa no centro
desse sopro feroz. E o soneto
veloz abranda um pouco, e ela curva o corpo
teatral - e o ânus sobe como uma flor animal.
O meu pénis avança, no soneto que soletro
como uma dança, ou um peixe negro nos
frios planos sombrios e sonâmbulos:
- a aliança intrínseca de um pénis e de um ânus.

IV

Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre
os cotovelos. Batem as folhas da luz
um pouco abaixo do silêncio. Quero saber
o nome de quem morre: o vestido de ar
ardendo, os pés em movimento no meio
do meu coração. O nome:
madeira que arqueja, seca desde o fundo
do seu tempo vegetal coarctado.
E, ao abrir-se a toalha viva, o
nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus
pulmões de algodão queimando.
Uma serpente de ouro abraça os quadris
negros e molhados. E a água que se debruça
olha a loucura com seu nome: indecifrável, cego

Herberto Helder

foto: não foi possível identificar o autor...

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